"Laissez faire, laissez aller, laissez passer, le monde va de lui-même"

terça-feira, 29 de abril de 2014

Uma breve reflexão quanto às Câmaras Especializadas em Direito do Consumidor

Primeiramente, tenhamos em vista, dentro da perspectiva liberal, um pressuposto: a aplicação do Código de Defesa do Consumidor é intrinsecamente ruim, pois interfere diretamente em um dos seus básicos pilares, o da troca livre. Pressupõe-se a existência de partes hipossuficientes em relações voluntárias e que elas devem ser protegidas através de benefícios e regulamentações advindas do Estado e seu planejamento central. No momento, ter-se-á como premissa que essas intervenções não geram valor nem protegem ninguém.

O objetivo aqui é analisar a recente criação[1] das Câmaras Especializadas em Direito do Consumidor no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Naturalmente, seriam competentes esses órgãos para apreciar as causas que versem sobre Direito do Consumidor, o que nos leva direto a seguinte questão: como funcionaria esse recorte? Nada contra a especialização do Judiciário em segmentos (o que, de forma geral, parece uma idéia potencialmente benéfica), mas não se pode ignorar os desdobramentos dessa lógica ao caso em comento.

O primeiro passo é recorrer ao próprio CDC para procurar as suas definições sobre os principais conceitos do direito consumerista, o que já é, destarte, preocupante. Posto que consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final; fornecedor é toda é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços; produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial, e; serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, percebe-se a abrangência e abertura textual dos mesmos.

Assim, combinando-se esta opção legislativa ao fato de que quase tudo no mundo contemporâneo constitui consumo, o desastre estava anunciado: na primeira semana de funcionamento da nova organização judiciária, apurou-se distribuição média de 24 processos para os Desembargadores das Câmaras Especializadas e de 03 processos para os Desembargadores das Câmaras Cíveis[2]. Por óbvio, algo de errado e inviável a nível prático, mas mesmo a teoria aqui se revela preocupante.

Com tantos processos sendo distribuídos ou tendo sua competência declinada para as Câmaras especializadas, nas quais se percebe a preponderância da aplicação do CDC - mesmo em causas complexas que atraem a si a aplicação de diferentes legislações -, quantos casos não estão tomando rumos diferentes do usual? Preocupante perceber o avanço da interferência estatal nas trocas voluntárias através da crescente aplicação de um código tão interventor como é o CDC nos mais diversos e diferentes campos da sociedade.




[1] Lei estadual nº 6375, de 27 de dezembro de 2012.
[2] Resolução TJ / OE / RJ nº 34/2013

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Um projeto liberal para as drogas, por João Manoel Nonato

As drogas estão em alta. Talvez a discussão acerca da descriminalização/legalização das drogas nunca tenha assumido tamanha proporção em nossa época como agora. Medidas inéditas têm sido tomadas; estudos científicos inovadores têm sido produzidos; fatos históricos têm-se consolidado. A legalização do uso e comércio da maconha no Uruguai e nos estados americanos de Colorado e Washington – além de acontecimentos chocantes, como a morte do ator Philip Seymour Hoffman por uma suposta overdose de heroína – garantiram que o assunto permanecesse, nos últimos tempos, tanto nas páginas dos jornais quanto na boca das pessoas e nas pautas dos políticos.

Mas, afinal, em termos de políticas públicas, qual é a melhor forma de lidar com a questão das drogas? Proibí-las ou liberá-las? E, se a solução for a liberação, como esse processo deve ser efetivado? Que drogas devem ser legalizadas, com base em quais critérios? Que ressalvas devem ser feitas? Como regular o uso e o comércio? Qual modelo de comercialização deve ser utilizado?

1.      Em defesa da descriminalização das drogas

As perguntas são muitas, e algumas respostas são ainda incertas. Mas dados e argumentos apontam, já com certa clareza, as vantagens da descriminalização/legalização das drogas. É isso que defenderei nesse texto. Eu defendo que todas as drogas deveriam ser descriminalizadas, e algumas (a maconha é o exemplo óbvio) deveriam ser de fato legalizadas para livre comércio e uso, tendo por base alguns critérios regulativos (tal como já ocorre com tabaco, álcool, farmacêuticos etc).

O primeiro argumento a ser invocado é o argumento do livre uso da propriedade privada. Oras, se somos donos de nossos corpos e nossas vidas, temos soberania sobre eles: cabe a cada um de nós, e a cada um de nós apenas, decidir o que entra em nossos corpos – seja qual for a substância, seja qual for o meio. Mas reconheço que esse argumento é insuficiente e até um tanto ingênuo. Afinal, muitas drogas são conhecidas por tirarem do indivíduo seu autocontrole e seu poder de decisão, aumentando as chances de causarem danos sociais, para além de seu próprio corpo e de sua própria vida – fato que deve ser levado em consideração com bastante peso nesse debate. O gráfico abaixo ilustra essa ideia de forma clara. Curiosamente (ou talvez não), o álcool é considerado a droga com maior potencial de causar danos sociais:


De todo modo, a descriminalização total das drogas não é apenas uma questão de liberdade individual. É, sobretudo, uma questão de eficiência no tratamento e na prevenção do vício (que é o que deveria ser o verdadeiro foco do "combate às drogas"). Com efeito, a descriminalização das drogas, acoplada a uma mudança de foco das políticas públicas – do campo da segurança pública para o campo da saúde pública –, parece apresentar diversas vantagens nesse sentido.

2.      Descriminalização e eficiência de políticas de saúde pública

Por exemplo, como explica um recente artigo da The Economist, a Suíça e a Holanda, nos anos 2000, foram pioneiras em adotar, como política nacional de saúde pública, um "Tratamento Assistido de Heroína" (HAT, na sigla em inglês). Em paralelo à descriminalização da heroína, foram instaladas "salas de injeção" em hospitais públicos, onde viciados podem adquirir e injetar heroína sem que paguem nada, sob supervisão médica – e, se assim desejarem, podem iniciar um tratamento que inclui o uso de drogas substitutas como a metadona. A maioria dos viciados acaba por se tratar.

Nesses países, com a presença do sistema HAT, o uso de heroína decaiu drasticamente; a incidência de novos usuários tende a zero, e a idade média dos usuários vem aumentando. Crimes relacionados a drogas também decaíram sensivelmente, bem como mortes relacionadas ao uso de heroína ou infecção de HIV. A facilidade de aquisição da heroína em ambiente seguro, o uso supervisionado da droga, a abordagem mais efetiva para a participação em tratamentos, e o maior conforto dos usuários em admitir seu vício e buscar ajuda são alguns dos fatores que contribuíram para esses resultados – os quais também parecem ser influenciados pela legalização da maconha, que tende a separar o usuário de maconha de outras drogas mais pesadas.

Outro argumento em favor da legalização das drogas é que, assim, elas podem ser reguladas e ter algum tipo de controle de qualidade, o que traz mais segurança ao usuário. Ao contrário da heroína oferecida pelo sistema HAT, a droga encontrada nas ruas é muitas vezes impura e contém substâncias muito mais prejudiciais à saúde do que a droga "original" – por exemplo, fentanil, que tem sido misturado à heroina e é 50-80 vezes mais potente que morfina. Como no mercado negro não existe regulação, controle de qualidade, ou proteção contra fraudes, o usuário de drogas acaba por comprar produtos adulterados, ainda mais perigosos, sem que sequer saiba disso, aumentando exponencialmente os riscos de uma overdose ou outros problemas de saúde.

Em suma, a descriminalização das drogas (e a efetiva legalização de drogas menos pesadas), acoplada à ampliação do acesso a programas de saúde, parece, portanto, ser mais eficaz no tratamento e prevenção do vício em drogas. Também parece servir para proteger o usuário de incidentes relacionados ao consumo de drogas e garantir algum tipo de controle de qualidade das substâncias consumidas. Tudo isso leva a um cenário onde há menos mortes e menos crimes relacionados às drogas – havendo, também, um gasto mais eficiente dos recursos públicos destinados a essa questão, os quais seriam enfim alocados no campo da saúde, que é, de fato, a verdadeira raiz dos problemas.

3.      O fim da (literal) guerra às drogas

Colocando de outra forma, talvez mais clara: mudando o foco da questão das drogas do campo da segurança pública para o campo da saúde pública, seria possível evitar que se continuassem gastando milhões e milhões com uma verdadeira guerra – que, para além dos altíssimos custos financeiros, também acarreta elevados custos humanos. A política antidrogas, desde sempre fadada ao fracasso, tem como maior legado a marginalização e criminalização de uma parcela da população majoritariamente pobre e negra – um resultado talvez não esperado, mas ainda evidente e preocupante.

De fato, não surpreendentemente, a maioria dos presos no Brasil cometeram crimes relacionados ao tráfico de entorpecentes. Nos Estados Unidos, não é diferente. A taxa de encarceramento aumentou exponencialmente desde o começo da "Guerra às Drogas", nos anos 70, tendo como alvo sobretudo os negros e hispânicos. A correlação entre política antidrogas e encarceramento é óbvia, mas nem um pouco eficaz. Em suma, os custos humanos da política antidrogas são muito mais altos do que seriam os custos de uma política de liberalização das drogas. E, ainda por cima, são custos muito mal distribuídos entre a sociedade – reflexo da iniquidade da justiça criminal. Os gráficos abaixo ilustram com clareza a situação:






Os benefícios da política antidrogas, por outro lado, são praticamente invisíveis, e ainda mais mal distribuídos na sociedade: não se conseguiu frear o consumo de drogas (pelo contrário!), causaram-se muito mais mortes, e gastou-se muito mais dinheiro, material e pessoal. Ademais, ironicamente, essa política cria seu próprio inimigo, já que indiretamente incentiva a criação e o fortalecimento do tráfico, de carteis e de mercados negros, uma vez que, com a proibição das drogas, aos usuários não restam quaisquer alternativas legais no livre mercado.

4.      A livre comercialização das drogas

Outra questão importante de ser discutida, uma vez assumidas as vantagens da descriminalização/legalização das drogas, é o modelo de comercialização da maconha (e outras drogas, porventura). Sendo um nicho de mercado como qualquer outro, as drogas, uma vez legalizadas, estariam sujeitas a mecanismos de oferta e demanda – sendo, portanto, bastante receptivas ao livre mercado. Nesse sentido, a opção do Uruguai pelo monopólio estatal na comercialização da maconha não parece ser a mais adequada.

Sendo pré-definido algum tipo de regulamentação que ditasse critérios mínimos de qualidade e afins, a comercialização e distribuição das drogas deveria ser descentralizada, estimulando-se a competição e o surgimento de pequenos e médios empreendedores nesse mercado. Isso traria diversas externalidades positivas, tais como o fortalecimento de economias locais, e mesmo nacionais (principalmente em se tratando da maconha, que possui diversas utilidades para além do uso recreacional). No longo prazo, também haveria a tendência dos preços baixarem e das opções disponíveis aumentarem, devido aos incentivos mercadológicos à competição e à inovação. Por essa mesma razão, a qualidade das drogas também tenderia a se manter alta, até mesmo independentemente de leis e regulações.

Outra razão para se defender a solução do livre mercado é o aumento do poder de agência do consumidor: ele poderia escolher onde comprar, que "tipo" comprar, quanto comprar, quando comprar, como comprar. O mercado, por sua vez, seria moldado conforme as preferências dos consumidores, refletindo-as – da mesma forma que reflete, através do sistema livre de preços, as relações de oferta e demanda em geral. Informações sobre oferta, demanda e preferências dos consumidores são de suma importância para a formação de um mercado relativamente estável e previsível, o que pouparia custos de todo tipo (inclusive aqueles relacionados a conhecimento e procura pelo produto) tanto aos consumidores quanto aos produtores e distribuidores de drogas.

Diante dessas vantagens econômicas, somadas às vantagens sociais e jurídicas, diminui-se a probabilidade de surgimento ou manutenção de mercados negros. Com efeito, o livre comércio de drogas cortaria grande parte das receitas do tráfico. Um estudo afirma que apenas a legalização da maconha nos estados americanos de Colorado, Washington e Oregon já diminuiria em 30% os lucros dos cartéis mexicanos.

5.      A taxação das drogas

A taxação de drogas é outra questão delicada, e que deve ser discutida a fundo, já que pode ter grave influência sobre o funcionamento desse nicho de mercado. Uma das óbvias razões para a taxação pesada de tais produtos é o desestímulo ao seu uso, tal como já ocorre com álcool e tabaco (impostos compõem quase 30% do preço final de um maço de cigarros). Isso ocorre porque drogas em geral são consideradas "bens demeritórios", isto é, bens socialmente indesejáveis e/ou que trazem muitas externalidades negativas. Outra razão para a taxação alta é garantir ao governo uma alta receita gerada pela tributação – a qual poderia ser usada para se investir em políticas relacionadas às drogas (prevenção, conscientização, tratamento etc).


A própria eficácia ou legitimidade da política de taxação para cumprir seus supostos objetivos pode ser questionada, em outras linhas de crítica. A questão crucial aqui, no entanto, é determinar o ponto de otimalidade da taxação - isto é, o máximo que os indivíduos estariam dispostos a pagar de taxas, garantindo o máximo de arrecadação ao Estado e evitando que os indivíduos recorram a meios de escapar da taxação. O grande problema de sobretaxar produtos como drogas, obviamente, é que os consumidores (sobretudo os mais pobres) podem acabar preferindo, dentre outras alternativas, comprá-las a preços substancialmente menores no mercado negro – o que colocaria em risco as vantagens e o próprio projeto do livre comércio de drogas.

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