As
drogas estão em alta. Talvez a discussão acerca da
descriminalização/legalização das drogas nunca tenha assumido tamanha proporção
em nossa época como agora. Medidas inéditas têm sido tomadas; estudos
científicos inovadores têm sido produzidos; fatos históricos têm-se
consolidado. A legalização do uso e comércio da maconha no Uruguai e nos
estados americanos de Colorado e Washington – além de acontecimentos chocantes,
como a morte do ator Philip Seymour Hoffman por uma suposta overdose de heroína
– garantiram que o assunto permanecesse, nos últimos tempos, tanto nas páginas
dos jornais quanto na boca das pessoas e nas pautas dos políticos.
Mas,
afinal, em termos de políticas públicas, qual é a melhor forma de lidar com a
questão das drogas? Proibí-las ou liberá-las? E, se a solução for a liberação,
como esse processo deve ser efetivado? Que drogas devem ser legalizadas, com
base em quais critérios? Que ressalvas devem ser feitas? Como regular o uso e o
comércio? Qual modelo de comercialização deve ser utilizado?
1. Em defesa da
descriminalização das drogas
As
perguntas são muitas, e algumas respostas são ainda incertas. Mas dados e
argumentos apontam, já com certa clareza, as vantagens da
descriminalização/legalização das drogas. É isso que defenderei nesse texto. Eu
defendo que todas as drogas deveriam ser descriminalizadas, e algumas (a maconha
é o exemplo óbvio) deveriam ser de fato legalizadas para livre comércio e uso,
tendo por base alguns critérios regulativos (tal como já ocorre com tabaco,
álcool, farmacêuticos etc).
O
primeiro argumento a ser invocado é o argumento do livre uso da propriedade
privada. Oras, se somos donos de nossos corpos e nossas vidas, temos soberania
sobre eles: cabe a cada um de nós, e a cada um de nós apenas, decidir o que entra
em nossos corpos – seja qual for a substância, seja qual for o meio. Mas
reconheço que esse argumento é insuficiente e até um tanto ingênuo. Afinal,
muitas drogas são conhecidas por tirarem do indivíduo seu autocontrole e seu
poder de decisão, aumentando as chances de causarem danos sociais, para além de
seu próprio corpo e de sua própria vida – fato que deve ser levado em
consideração com bastante peso nesse debate. O gráfico abaixo ilustra essa
ideia de forma clara. Curiosamente (ou talvez não), o álcool é considerado a
droga com maior potencial de causar danos sociais:
De todo
modo, a descriminalização total das drogas não é apenas uma questão de
liberdade individual. É, sobretudo, uma questão de eficiência no tratamento e
na prevenção do vício (que é o que deveria ser o verdadeiro foco do
"combate às drogas"). Com efeito, a descriminalização das drogas,
acoplada a uma mudança de foco das políticas públicas – do campo da segurança
pública para o campo da saúde pública –, parece apresentar diversas vantagens
nesse sentido.
2. Descriminalização e
eficiência de políticas de saúde pública
Por
exemplo, como explica um recente artigo da The Economist, a Suíça e a Holanda, nos anos 2000, foram pioneiras
em adotar, como política nacional de saúde pública, um "Tratamento
Assistido de Heroína" (HAT, na sigla em inglês). Em paralelo à
descriminalização da heroína, foram instaladas "salas de injeção" em
hospitais públicos, onde viciados podem adquirir e injetar heroína sem que
paguem nada, sob supervisão médica – e, se assim desejarem, podem iniciar um
tratamento que inclui o uso de drogas substitutas como a metadona. A maioria
dos viciados acaba por se tratar.
Nesses
países, com a presença do sistema HAT, o uso de heroína decaiu drasticamente; a
incidência de novos usuários tende a zero, e a idade média dos usuários vem aumentando.
Crimes relacionados a drogas também decaíram sensivelmente, bem como mortes
relacionadas ao uso de heroína ou infecção de HIV. A facilidade de aquisição da
heroína em ambiente seguro, o uso supervisionado da droga, a abordagem mais
efetiva para a participação em tratamentos, e o maior conforto dos usuários em
admitir seu vício e buscar ajuda são alguns dos fatores que contribuíram para
esses resultados – os quais também parecem ser influenciados pela legalização
da maconha, que tende a separar o usuário de maconha de outras drogas mais
pesadas.
Outro
argumento em favor da legalização das drogas é que, assim, elas podem ser
reguladas e ter algum tipo de controle de qualidade, o que traz mais segurança
ao usuário. Ao contrário da heroína oferecida pelo sistema HAT, a droga
encontrada nas ruas é muitas vezes impura e contém substâncias muito mais
prejudiciais à saúde do que a droga "original" – por exemplo, fentanil, que tem sido misturado à heroina e é 50-80 vezes mais potente que morfina. Como no
mercado negro não existe regulação, controle de qualidade, ou proteção contra
fraudes, o usuário de drogas acaba por comprar produtos adulterados, ainda mais
perigosos, sem que sequer saiba disso, aumentando exponencialmente os riscos de
uma overdose ou outros problemas de saúde.
Em
suma, a descriminalização das drogas (e a efetiva legalização de drogas menos
pesadas), acoplada à ampliação do acesso a programas de saúde, parece,
portanto, ser mais eficaz no tratamento e prevenção do vício em drogas. Também
parece servir para proteger o usuário de incidentes relacionados ao consumo de
drogas e garantir algum tipo de controle de qualidade das substâncias
consumidas. Tudo isso leva a um cenário onde há menos mortes e menos crimes
relacionados às drogas – havendo, também, um gasto mais eficiente dos recursos
públicos destinados a essa questão, os quais seriam enfim alocados no campo da
saúde, que é, de fato, a verdadeira raiz dos problemas.
3. O fim da (literal)
guerra às drogas
Colocando
de outra forma, talvez mais clara: mudando o foco da questão das drogas do
campo da segurança pública para o campo da saúde pública, seria possível evitar
que se continuassem gastando milhões e milhões com uma verdadeira guerra – que,
para além dos altíssimos custos financeiros, também acarreta elevados custos
humanos. A política antidrogas, desde sempre fadada ao fracasso, tem como maior
legado a marginalização e criminalização de uma parcela da população
majoritariamente pobre e negra – um resultado talvez não esperado, mas ainda
evidente e preocupante.
De
fato, não surpreendentemente, a maioria dos presos no Brasil cometeram crimes
relacionados ao tráfico de entorpecentes. Nos Estados Unidos, não é diferente. A taxa de
encarceramento aumentou exponencialmente desde o começo da "Guerra às
Drogas", nos anos 70, tendo como alvo sobretudo os negros e hispânicos. A
correlação entre política antidrogas e encarceramento é óbvia, mas nem um pouco
eficaz. Em suma, os custos humanos da política antidrogas são muito mais altos
do que seriam os custos de uma política de liberalização das drogas. E, ainda
por cima, são custos muito mal distribuídos entre a sociedade – reflexo da iniquidade
da justiça criminal. Os gráficos abaixo ilustram com clareza a situação:
Os
benefícios da política antidrogas, por outro lado, são praticamente invisíveis,
e ainda mais mal distribuídos na sociedade: não se conseguiu frear o consumo de
drogas (pelo contrário!), causaram-se muito mais mortes, e gastou-se muito mais
dinheiro, material e pessoal. Ademais, ironicamente, essa política cria seu próprio inimigo, já que
indiretamente incentiva a criação e o fortalecimento do tráfico, de carteis e
de mercados negros, uma vez que, com a proibição das drogas, aos usuários não
restam quaisquer alternativas legais no livre mercado.
4. A livre
comercialização das drogas
Outra
questão importante de ser discutida, uma vez assumidas as vantagens da
descriminalização/legalização das drogas, é o modelo de comercialização da
maconha (e outras drogas, porventura). Sendo um nicho de mercado como qualquer
outro, as drogas, uma vez legalizadas, estariam sujeitas a mecanismos de oferta
e demanda – sendo, portanto, bastante receptivas ao livre mercado. Nesse
sentido, a opção do Uruguai pelo monopólio estatal na comercialização da
maconha não parece ser a mais adequada.
Sendo
pré-definido algum tipo de regulamentação que ditasse critérios mínimos de
qualidade e afins, a comercialização e distribuição das drogas deveria ser
descentralizada, estimulando-se a competição e o surgimento de pequenos e
médios empreendedores nesse mercado. Isso traria diversas externalidades
positivas, tais como o fortalecimento de economias locais, e mesmo nacionais
(principalmente em se tratando da maconha, que possui diversas utilidades para
além do uso recreacional). No longo prazo, também haveria a tendência dos preços
baixarem e das opções disponíveis aumentarem, devido aos incentivos
mercadológicos à competição e à inovação. Por essa mesma razão, a qualidade das
drogas também tenderia a se manter alta, até mesmo independentemente de leis e
regulações.
Outra
razão para se defender a solução do livre mercado é o aumento do poder de
agência do consumidor: ele poderia escolher onde comprar, que "tipo"
comprar, quanto comprar, quando comprar, como comprar. O mercado, por sua vez, seria
moldado conforme as preferências dos consumidores, refletindo-as – da mesma
forma que reflete, através do sistema livre de preços, as relações de oferta e demanda em geral.
Informações sobre oferta, demanda e preferências dos consumidores são de suma
importância para a formação de um mercado relativamente estável e previsível, o
que pouparia custos de todo tipo (inclusive aqueles relacionados a conhecimento
e procura pelo produto) tanto aos consumidores quanto aos produtores e
distribuidores de drogas.
Diante
dessas vantagens econômicas, somadas às vantagens sociais e jurídicas,
diminui-se a probabilidade de surgimento ou manutenção de mercados negros. Com
efeito, o livre comércio de drogas cortaria grande parte das receitas do tráfico.
Um estudo
afirma que apenas a legalização da maconha nos estados americanos de Colorado,
Washington e Oregon já diminuiria em 30% os lucros dos cartéis mexicanos.
5. A taxação das
drogas
A
taxação de drogas é outra questão delicada, e que deve ser discutida a fundo,
já que pode ter grave influência sobre o funcionamento desse nicho de mercado.
Uma das óbvias razões para a taxação pesada de tais produtos é o desestímulo ao
seu uso, tal como já ocorre com álcool e tabaco (impostos compõem quase 30% do preço final de um maço de cigarros). Isso ocorre porque drogas em geral são consideradas
"bens demeritórios", isto é, bens socialmente indesejáveis e/ou que
trazem muitas externalidades negativas. Outra razão para a taxação alta é garantir
ao governo uma alta receita gerada pela tributação – a qual poderia ser usada
para se investir em políticas relacionadas às drogas (prevenção,
conscientização, tratamento etc).
A
própria eficácia ou legitimidade da política de taxação para cumprir seus
supostos objetivos pode ser questionada, em outras linhas de crítica. A questão
crucial aqui, no entanto, é determinar o ponto de otimalidade da taxação - isto é, o máximo que os indivíduos estariam
dispostos a pagar de taxas, garantindo o máximo de arrecadação ao Estado e
evitando que os indivíduos recorram a meios de escapar da taxação. O grande
problema de sobretaxar produtos como drogas, obviamente, é que os consumidores
(sobretudo os mais pobres) podem acabar preferindo, dentre outras alternativas,
comprá-las a preços substancialmente menores no mercado negro – o que colocaria
em risco as vantagens e o próprio projeto do livre comércio de drogas.